Quem Fez Poesia? #62 — Salma Soria

Confira as trajetórias e as inspirações da poeta selecionada nesta temporada, na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:

Salma tem uma escrita de expansão, deliciosamente inquietante, inquietantemente deliciosa, de léxico e articulação muito próprios. Daria para esperar algo diferente de uma poeta cujo nome exala poesia?

Considero dádiva (dádiva que se desenvolve) escrever como quem reza baixinho, como se entoasse cântico, salmo, calma; escrever como quem mergulha nos mistérios salgados de mar, para ser sal da terra, luz do mundo; escrever como quem rodopia com saia esvoaçante, sem fazer rodeios. E Salma escreve.

Como quem sibila as sílabas, como quem saboreia o agridoce. E, transitando pelo enigma da esfinge, pelo oráculo do deslocamento, pela consciência da transitoriedade, entende que é o mar quem a navega pelos alicerces da incerteza. Aceita um convite com a voz firme e gentil de mulher profunda e ancestral, sem perder a ternura, aberta à escuta e àquele algo que transcende, àquela alga bioluminescente.

Sorte de quem sabe desfrutar dessa grandeza. E grandezas também se fazem nas miudezas, no detalhe da costura, na tessitura, nos fios entramados, nas entrelinhas que alinhavam dúvidas e angústias, sim, mas alegria também.

Com açúcar e com afeto,

Ana C. Moura — Editora de Conteúdo da Fazia Poesia.

As palavras

Nunca soube ensaiar o que dizer, muito menos prever as palavras. Deve ser por isso que escrevo, por não conseguir enxergar o dizer como um atalho para manipulações. O que significa controlar as palavras se elas saem sem prever um ensaio? Que lugar dar à iminente palavra que liga a ideia ao sentimento? Há muitos diálogos sem respostas, vontades abandonadas, impasses marcados. Na sucessão da lógica que fracassa, talvez aí resida a poesia.

Gosto de simular órbitas, tocar outras rotações, criar eixos. Na poesia, há a tentativa de alcançar instâncias que atravessam os segundos, transferindo o gesto do vento para uma luz que brilha na palavra. Não gosto de lidar com a normalidade da rotina, porque a farsa se vestiu de cotidiano. E isto não é nada amoroso. A poesia revela segredos que farsantes odeiam e é por isso que um poema pode ser tão perigoso, porque entre o valor pago e o valor percebido a poesia flana sem nenhum interesse monetário entre tudo o que há. Poetas observam tudo o que acontece por debaixo da superfície. Seja ela beleza, devoção, velocidade, crueza no que existe de mais irreversível: a vida. E ela acontece sem intervalos comerciais.

Paul Celan foi primeiro poeta “perigoso” que li, ainda na adolescência. As profundezas dos versos do grande poeta alemão me retiraram da zona de conforto estético que encontrava na moda — mundo em que convivo desde os 13 anos — e me lançaram para um universo de profunda densidade e reflexão. Ainda hoje, mais de vinte anos depois do encontro com Paul Celan, costumo declamar em casa e em voz alta o poema “Canção de uma dama na sombra”, do próprio Celan: “Quando vem a taciturna/ e poda as tulipas/ Quem sai ganhando? / Quem perde? / Quem aparece na janela? / Quem diz primeiro o nome dela?”. E, toda vez que isso acontece, sempre há um perfume diferente entre as coisas ao redor. Esse é um poema milimetricamente especial para mim.

Não consigo me lembrar do primeiro poema que escrevi. Eles simplesmente acontecem. Penso no poema como rastro do que carrega o peito e se reconstitui através da linguagem seguindo em viagem até encontrar o itinerário do outro.

A moda

Se fosse abrir um tabuleiro numa espécie de jogo da minha própria vida, numa tabela racional do que existe de mais comum, a moda avançaria muitas casas. Minha carreira de escrita e moda começa em maio de 2000, então com 13 anos de idade. Escrevi uma carta de oito páginas para o criador da semana de moda de São Paulo, Paulo Borges. Nessa carta, narrava toda a minha paixão pela moda e avisava dos poemas que dedicava ao mundo fashion. Sonhava em ser estilista, talvez por ser filha de um alfaiate e neta de uma costureira. Quando o Paulo Borges leu aquela carta enorme, disse “Você não vai ser estilista, vai ser escritora”. E me convidou para escrever sobre moda no site oficial do evento. Mas aquela coisa de escrever era algo impossível na minha cabeça de menina porque olhava ao redor e não havia escritoras ou poetas que pensavam a moda ou a roupa. Então, me contentei em reportar coisas do mesmo modo que as jornalistas.

Apesar de tanto sofrimento que aquilo me trouxe por ser muito menina e muito pobre, caminhando na dinâmica desumanizadora do mundo “rico civilizado” (ou seriam eles que deveriam compreender?), fui alçada pelo maior evento da moda brasileira, como repórter teen (dos 13 aos 19 anos). Isso muito antes da era de influenciadores e toda gama poser. Circulei entre todo tipo de pessoas que se pode imaginar. Apesar de ser uma experiência que paguei com a perda da adolescência, o que me salvou da desumanidade foi a escrita. E dediquei muitos poemas à moda. Tenho vários deles guardados até hoje. Uns não tenho coragem de reler. Talvez um dia publique ou deixe quieto. O mundo da alta moda é apaixonante, mas pode ser um monstro muito, muito cruel com algumas pessoas. Se você for menina e pobre, então… tenha cuidado.

Sei que não sou um modelo canônico para o meio literário. Minha primeira formação acadêmica é design de moda. Mesmo trabalhando com o mundo das roupas durante todos esses anos, nunca deixei de ler literatura e principalmente de escrever. Aos 35 anos e com um filho adolescente, em 2021 publiquei pela Editora Penalux meu primeiro livro, chamado Vestindo a roupa ouvindo a máquina. Escrevi esses contos aos 22, 23 anos, mas não tive coragem de mostrar para ninguém. Até que anos depois lancei o livro. Hoje olho para essa obra com certa inquietação, talvez um dia revise umas coisas ali, mas a estrutura da obra nasce a partir de um poema que escrevi e tem apenas 7 linhas: “Aqui troca / tudo / até a angústia que temos / e assim as roupas escondem / enquanto dizemos beleza / esquecendo-se / dos outros”. Cada linha dá título a um conto diferente. No mesmo ano lancei outro livro de contos chamado Muitas roupas aqui, também pela editora Penalux. A prosa é experimental. Um dos textos que mais gostei de ter escrito é o “Porta dos fundos da confecção”. São cinco páginas sobre isto.

Do livro “Muitas roupas aqui”, ed. Penalux (2021).

Sim, podem dizer que escrevo um monte de lixo.

Fazia Poesia e “Formas dissimuladas de dizer bom-dia”

São 24 anos de escrita com dezenas de poesias sobre roupas. Eu não sabia o que fazer com os versos. Os veículos de moda tradicionais jamais publicariam. Também nunca quis ser uma influencer de moda porque meu ofício é a escrita e isso toma muito, muito tempo. Até entrar para a equipe de poetas do Fazia Poesia em 2022. Fui acolhida por uma comunidade entusiasmada de poetas de várias regiões do país. Poetas incríveis, diversos. No FP me senti à vontade para ir publicando minhas roupas-poemas, até começar entender que poderia dar forma a outros universos e falar de coisas além da relação do vestir, expandindo meus horizontes, no que resultou em Formas dissimuladas de dizer bom-dia, obra que ganhou menção honrosa no V Prêmio Ufes de Literatura.

Em 2023, acrescentei novos poemas e convidei para escrever orelha e posfácio dois artistas que admiro. Publiquei o livro pela editora Patuá. Para a orelha, chamei o poeta e arte-educador André Gravatá, que faz trabalhos extraordinários no têxtil. Para o posfácio, convidei a cantora, atriz, escritora e ilustradora Karina Buhr. Brinco dizendo que é o primeiro posfácio com margem de erro da história da literatura porque o livro inteiro é dividido por seções de “margens de erro”. As incertezas dão o tom da obra porque sinto que nesta década de 2020 o que nos deixaram foram apenas inseguranças nas estruturas. Há uma grande inquietação quanto ao amanhã. O ar do amanhã nasce — não pela dúvida existencial que permeou o século XX — corroído pela reinterpretação da lógica ao sabor das vontades. Sabemos que a conta não fecha.

Gosto da experimentação das formas. Estou sempre testando algo aqui e ali. A poesia é uma das formas de acesso ao sublime, mas não penso nisso de maneira romantizada ou com um vapor burocrático no entorno. Gosto de brincar com contornos, capturar, rasurar, refazer percursos poéticos com o que pode ser considerado “menor”. Nem sempre o banal é menor. Pode ser um falso banal. Acredito no invisível e vou coletando umas ausências que se formam ao redor. Ausência de um estado, de política pública, de afetos. Uma ausência de verdades. Acho que as redes sociais sequestraram diversas coisas, mas a linguagem foi a que mais sofreu com isso. Formas dissimuladas é um livro inteiro sobre diferentes camadas de verdades evitadas, por assim dizer, e venho brincando com a forma não somente como um exercício estético, mas também como uma forma de tentar relatar na poesia os segundos fakes que vivemos. Sinto que há um cinismo imenso nos lugares. Por que a poesia seria imune a isso?

Minhas inspirações partem de inquietações, curiosidades, perguntas que ficam pelo ar. E isso pode vir do teatro, da poesia, da pintura, das roupas ou das reportagens policiais. Gosto de conhecer visões de mundo distintas, para além da aparência das coisas. Entre contos e poesias, devo publicar em breve uma outra obra e defender minha dissertação de mestrado em filosofia. Por conta de escrever por diversos gêneros, acaba tendo esse lance de nomenclatura entre uma coisa e outra, então uma hora é a contista, a escritora, mas gosto mesmo é de ser chamada de poeta. Sigo pensando em versos porque levo muito a sério o que as palavras desejam.

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