Quem Fez Poesia? #61— Penha Souza

Confira as trajetórias e as inspirações da poeta selecionada nesta temporada, na Fazia Poesia

Editorial Fazia Poesia
Fazia Poesia

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Palavras da editora:

Viver é um estado permanente de risco e tem dias que a vida é (ainda mais) um ato de coragem — e a conclusão disso não é aquela frase pronta, “seus sonhos estão esperando você do outro lado do medo”, que às vezes sai daqueles papos motivacionais sem contexto e sem sentido.

Viver também pode ser lançar-se a um permanente (permanência à la Heráclito) estado de poesia (e mistério) — e isso é bom, e é isso que Penha faz desde muito cedo em sua trajetória pela vida louca vida.

Sua escrita dilacera e remenda: é o pano, o buraco, a linha e a agulha, uma dança da tricotagem, dos vincos, da (des)costura. Há rasgos que vêm para o bem.

Sua escrita é a um só tempo o dedo de São Tomé na pintura de Caravaggio e o bálsamo que cura a ferida.

O resultado dessas deliciosas — posto que arriscadas e corajosas — combinações só poderia ser um elixir que desce suave, por causa da potência, que desce potente, por causa da suavidade. Ele te fisga pelos cinco sentidos, envolve e comove. Tem o melhor estilo de Tom Zé, mas não é de Tom nem de Chico: é de Penha e de seu próprio estado de poesia.

Eu realmente torço, leitor, para que você se permita ser capturado e experimente desse elixir: beba de canudinho, como quem aprecia um bom drinque; beba de uma única golada, como quem vira uma dose de aguardente ou bebe água com muita sede — o risco, a coragem e o estado de poesia também são ótimos para acompanhar. E viver.

Com açúcar e com afeto,

Ana C. Moura— Editora de Conteúdo da Fazia Poesia.

uma mulher preta, nascida numa cidade de população majoritariamente branca. a filha mais nova de uma família grande. nasci na segunda quarta-feira de janeiro de 1992, de um parto considerado de risco, e o risco sempre fez parte da minha vida, especialmente pelos riscos que tomo no papel, ao escrever poemas. são esses os mais ousados riscos que me arrisco a cometer.

o começo

não lembro quando exatamente comecei a escrever poesia. às vezes digo que escrevo desde antes de me entender por gente. quando eu me entendi “gente”, eu já era poeta há muito tempo. no entanto, demorei pra entender que o que eu escrevia era poesia, e mais tempo ainda para me dizer poeta.

quando criança, eu amava trabalhos de português que pediam que os alunos escrevessem poemas, me divertia! mas na maior parte da infância e comecinho da adolescência eu escrevia poemas na intenção de que fossem letras para música. o problema é que meu ritmo sempre foi péssimo, e minhas habilidades musicais limitadas demais para serem chamadas de habilidades. mas fui notando que esse ritmo que eu notava fazia sentido na declamação, e bem devagar fui aprendendo a conhecer a minha própria escrita e entender melhor o que eu estava fazendo.

no auge da adolescência vivi o que muitos poetas millenials viveram, e tive meu tumblr de poesia. eu me lembro de alguns nomes que utilizei para a página: “getmeouthere”, “asas-rasgadas”, “infelicidade-crônica” e “estômagoesburacadodejoe”; também tive alguns blogs: “mundopatético” e “caosenirvana”. guardo ainda alguns dos materiais que escrevi nessa época e, apesar de raramente conseguir, acho interessante revisitar o que escrevi nesse período, pois foi nele que escrevia com mais frequência e que passei a entender que o que eu fazia era poesia.

bloqueios e desbloqueios

a minha escrita se entrelaça muito ao meu estado emocional. escrever como uma forma de escapar da realidade, e às vezes de escapar para a realidade.

mas não basta apenas sentir uma emoção. pra escrita fluir, é preciso encará-la. os meus momentos de emoções intensas e dolorosas foram também os momentos em que menos consegui escrever. era difícil enfrentar as dores que eu não queria sentir. e esse estado de apatia tira de mim a capacidade de escrita, em qualquer âmbito, não apenas na poesia. ainda passava por um período de perdas pessoais muito difíceis durante a faculdade, e foi muito complexo e difícil conseguir escrever uma monografia estando com bloqueio criativo.

o bloqueio criativo mais longo que enfrentei foi de meados de 2015 a 2019. nesse período eu não consegui escrever poemas, e toda a minha energia para escrita eu usei para conseguir escrever meu TCC em 2017, apesar de toda a dificuldade.

foi necessária muita leitura para que eu voltasse a escrever. precisei de muitas conversas e precisei ser apresentada a novas perspectivas para conseguir encarar as emoções que tornavam tantas palavras impronunciáveis.

voltei a escrever poesia quando fui revisitar meus próprios escritos e encontrei um poema que escrevi por volta de 2014/2015, que falava sobre a falta de um personagem que havia morrido. e, apesar de esse poema já ser na época o mais longo que escrevi, nesse dia ele quase dobrou de tamanho, pois naquele momento eu percebi que poderia desenvolver muito mais a respeito daquela temática e também que havia muitas coisas a mais que eu queria dizer naquele texto.

o poema intitulado “eu procuro” é uma narração em primeira pessoa de uma personagem que perdeu uma pessoa amada de uma forma muito trágica e tem dificuldades em aceitar essa perda. alguns trechos dele (poema ainda não publicado completo em nenhum portal):

(…)

eu procuro
ele

e só o encontro
nessa merda
de poesia
que eu escrevo
para poder
finalmente admitir
que eu estou
o procurando
desde antes
dele ir

e admitir
que eu tentei
refazer seus passos
até o encontrar

e só o encontro
nesse papel
que não é ele

(…)

minhas unhas se foram
em minha procura:
talvez houvesse
algum resquício
dele nessas
microcamadas
que eu não
enxergo
entre minhas unhas
e meus dedos

unhas não foram
a única coisa
que ele
me fez arrancar de mim

eu arranquei
de mim alguns
fios de cabelo
na tentativa inútil
de arrancá-lo
junto com a raiz
e tê-lo do lado de fora
da minha cabeça

e tê-lo em minhas mãos

tê-lo em minhas mãos
e perceber que
nossos dedos
entrelaçavam-se
bem demais
tê-lo em minhas mãos
e perceber
que ele me fazia
pensar que havia
solução para tudo
exceto que aquele momento
não tinha solução
tê-lo em minhas mãos
e perceber que o relógio
tiquetaqueava
em uma velocidade
estranha
que o tempo nunca
era suficiente
que o tempo
não foi suficiente

mas ele,
só ele,
ele era suficiente

eu quero
tê-lo em minhas mãos
assim como tive aqueles
fios de cabelo
que eu me arranquei

assim como o espaço
entre meus dedos
e minhas unhas
parece não se preencher mais

(…)

admito aqui
e só aqui
nessa poesia
sem voz
que escrevo
para que não me reste
apenas o completo silêncio;
admito aqui:
a minha dependência

(…)

eu sou a arma
e sou também o projétil
eu só quero
me atirar nele
bem no coração
apertar aquele
maldito músculo
escondido, coberto
por aquela
caixa torácica
que não é obstáculo pra mim
pegar o coração
aquele maldito coração
e mostrar quem manda

(…)

perdas e mortes são temáticas recorrentes na minha escrita e são também esses os temas que mais demoro para elaborar.

acredito que é importante mencionar que, apesar de encontrar na escrita uma forma de expressão para essas emoções, ela não é necessariamente baseada em fatos reais. é muito mais frequente que eu imagine cenários e imagens, e que escreva a partir da descrição desse imaginário, tendo como elemento de inspiração o fator emocional. algo como um motor, mas não exatamente um espelho para minhas experiências reais.

fazia poesia

conheci a Fazia Poesia buscando conhecer poetas contemporâneos no Medium. acompanhava sempre que podia, deixando minhas “palminhas” para os poemas que me tocavam, e foi assim que, antes mesmo de fazer parte da equipe de poetas, eu conheci alguns autores que eu gosto muito de acompanhar pelo portal.

passei a integrar o time de poetas da Fazia Poesia em 2021, e fazer parte disso foi um acontecimento marcante, que me deu confiança para dizer sem culpa que eu sou poeta. apesar de escrever (como mencionei) desde antes de me entender por gente, ser uma das poetas que contribui para o portal, pra além de uma honra, é como ser apresentada a um modo de descobrir mais camadas da própria escrita e mergulhar mais fundo nos sentidos que levam a realizar a poesia.

antes do fim

quando falo sobre poesia, digo que é como estar em um labirinto de palavras, onde nem sempre você vai ser capaz de encontrar a saída, e o resultado talvez seja perceber que às vezes não há saída e, ainda, que às vezes a saída é o que menos importa.

quando escrevo, me permito ser deixada levar pelo fluxo e deixo que as palavras me levem pra onde quiserem levar; seja esse lugar mais ou menos doloroso, seja esse lugar mais ou menos complexo de falar, seja esse lugar mais ou menos parecido com a realidade.

gosto de ser totalmente conduzida, e só depois

só depois

eu interfiro na poesia.

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