PROGRAMA DE OFICINAS 2023
EXPOSIÇÃO | Biografia e autoficção: a poesia enquanto elo da escrita de si
Confira o que foi apresentado e produzido na primeira oficina do portal Fazia Poesia em 2024, ministrada pela poeta Anna Clara de Vitto
Nessa primeira oficina do portal Fazia Poesia em 2024, continuamos os estudos dentro da temática da autoficção e poesia, assunto que já havíamos trabalhado em outras oficinas com Anna Clara desde 2022.
Para introduzir os principais referenciais teóricos da autoficção, o primeiro encontro foi reservado às noções de autoria em literatura, citando Roland Barthes com a “morte do autor” e a crise do sujeito clássico. Vimos, ainda, quais os instrumentos de linguagem poética que podem ser postos a serviço do retorno do autor na poesia: melopeia, fanopeia, logopeia, de Ezra Pound.
O segundo e o terceiro encontros foram reservado às memórias, confissões, diários íntimos, diário como procedimento literário e o conceito de escrevivência, proposto por Conceição Evaristo. Também vimos o trabalho de Philippe Lejeune, a noção de biografemas proposta por Roland Barthes e o que não é autoficção, seguindo pelo hibridismo da autoficção e aplicabilidade ao fazer poético. Ao longo da oficina, lemos e trabalhamos com poemas escritos por Anne Sexton, Dia Nobre, Bianca Monteiro Garcia, Bruna Mitrano, Camila Martins, Aline Motta, Adília Lopes e outras poetas.
Por fim, no quarto e último encontro, era hora do fechamento de ideias, através de uma conversa livre e trocas entre ministrante e turma, lendo poemas, discutindo sobre os processos criativos e como a autoficção tem influenciado as produções contemporâneas através das vertentes possíveis.
A seguir, você confere os poemas produzidos ao longo dos encontros a partir das propostas de exercícios apresentadas. Boa leitura!
Encontro
por Denise Cristaldo
Em todas as comunidades os cachorros e os gatos nos recebem
acompanhados de porcos galos galinhas e pássaros
a natureza se mostra e mostra de onde as coisas nascem
há um portal que se abre
meu guia sussurra baixinho enquanto me prepara a oferenda
Dá-me a sorte para que não chova
e assim como teu avô
me leva por essas trilhas
onde os caminhos se cruzam
e mais uma vez a tua flecha
aquela que nunca erra o alvo
se materializa e voa de ponta afiada
rasga a matéria e me atravessa
Give and take
Awe kindness and beauty dancing forever
São nossos os segredos
os gostos e os cheiros
eu me banho nas águas
que barulhentas silenciam tudo ao redor
Trocamos nossa aliança tecida em fibra de bambu
E você escreve o meu nome no teu alfabeto
~
sem título
por Denise Cristaldo
Eu te mostro a minha casa
te deixo entrar
vamos juntos ao pé do monte
ouve-se a batucada caóticoordenada da cidade que pulsa por debaixo da neve e do concreto
caminhamos juntos pelas artérias labirínticas
pelas esquinas a gente que, como eu, veio e vai
com olhos lacrimejantes de quem não quer partir
Mesmo aqui a natureza se mostra e mostra de onde as coisas nascem
registro
por João Matos
duas crianças ficam uma ao lado da outra. a imagem, alaranjada pelo tempo, tem como plano de fundo uma parede de mesma cor. não se abraçam.
uma cruza os braços, parece relaxada — esboça um sorriso sem mostrar os dentes, o que viria a se repetir nos anos seguintes.
tenta esconder o dedinho machucado ainda cedo, talvez não queira esse registro. difícil fazer esta alegação, parece não se incomodar.
a outra mostra os dentes — nunca se furtou desse direito. braços para trás, está apertada. tenta ficar bonita contra a parede.
o olhar ainda tão vivo não entrega algum desprazer — pode estar feliz, mas quer sair dali. conseguiu sair.
partes de uma existência comum:
rostinhos carimbados pelo cotidiano, sorrisos e olhares inconfundíveis — que, às vezes, ignoramos para evitar constrangimentos.
todos ainda estão lá, as duas crianças ainda estão capturadas até que o registro se perca.
são paralelos. não navegam, não flutuam nem submergem,
caminham lado a lado sem perceber os desvios — às vezes,
em si mesmos.
a fotografia recortada é só um gatilho, não há nostalgia.
reverto ao original e vejo o pungente:
os dias que me esqueci;
os amigos que fiz e fui deixando um a um para trás;
quem eu costumava ser antes da minha ilusão biográfica.
cortando cebola
com um aparelho manual
reduzo as lágrimas.
penso no melhor que sei fazer:
não é cozinhar ou escrever,
mas lavo louça muito bem
desde os cinco minhavó
me ensinou a passar a mão
na louça para tirar o sabão
percorrendo toda a camada
do prato escorrido
me acostumo
com a água corrente
nas mãos
enrugando os dedos
e mesmo assim
salgo o arroz.
cotidiano
por laryssa carreiro
complementares
por Luciana Ribeiro
há os cantos da minha casa que tanto gosto
é o dentro
há a rua e a festa que tanto gosto
é o fora
há o simbólico que tanto gosto
é o longe
que vem pra perto
quando vira presente
~
carnaval
por Luciana Ribeiro
coloco a máscara e saio na noite tudo é colorido mas a máscara é impenetrável há música alegria carnaval por trás da máscara estou protegida ninguém sabe quem sou ninguém me conhece danço brinco seduzo seduzo tenho nas mãos o controle vou quando quero paro quando quero um outro mais outro outra ouso testo meus limites meus desejos beijos vou sem saber se volto tenho a máscara tudo é muito rápido tudo é muito intenso cores música bebida corpos suor saliva corpos muitos corpos. máscara.
Foto de antes
por Nelson Rodrigues
Pela foto de antes, olhei para trás várias vezes acreditando que nada queria encontrar, mas a memória o presente saúda e, seguindo o ritual do apaga-acende cigarros, perdi o rumo do percurso e, sem me dar conta, parei no início do recomeço. Neste instante, pensando nos planos de partir e naqueles dias nos quais matutamos, eu mudaria tudo só para errar diferente. Contudo, a chance de ontem é uma aposta que não se apaga e, dessa maneira, na precisão da roleta do acaso de hoje, resta a mim reconhecer o seu lugar e os meus sentimentos, aceitando que o relógio quebrou na hora certa e, entre sonhos e pesadelos, a recordação futura será também o que não fomos.
Partida
por Sarah Foli
Carreguei sua infância no colo, hoje há neblina
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤlatitude.
Sinto saudade de quando nada sabia
minha vigília durava e as tuas mãos eram menores que as minhas.
Crescemos, você passou a olhar por mim
ganhou as próprias chaves: ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤpartilha.
Você me seguiu buscando água potável
mas teve de encontrar
os
ㅤㅤㅤㅤPróprios
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤmeios
e apesar de meus dias na tua presença nunca mais serem cinzas
em silêncio recolhi as lágrimas para o travesseiro, desejei boa sorte
e a deixei ir.
Depoimentos
A oficina traz um conteúdo teórico parrudo. Mas nem por isso é enfadonha, ao contrário. A Anna sabe transmitir conhecimento com suavidade. E o ponto alto pra mim foram os exercícios práticos. Super bem conduzidos e costurados, culminando no último encontro, com uma troca linda que fez com que toda a oficina fizesse muito sentido.
— Luciana Ribeiro
~
Foi minha primeira experiência com oficina de poesia, fiquei encantado e pretendo fazer outras oficinas. Muito obrigado, Anna Clara e Zani. Até a próxima! Parabéns!
— Nelson Rodrigues
~
Uma oficina que propicia verdadeiros encontros com a poesia e seus amantes. Como foi gostoso passar o tempo com tanta gente interessada em poesia e ver que ela resiste.
— Denise Cristaldo
AGRADECIMENTOS E CONCLUSÃO
Por Anna Clara de Vitto
A cada turma da oficina, tem sido especial acompanhar as formas criativas pelas quais as poetas e os poetas se inserem corajosamente nos próprios processos de escrita. É sempre emocionante ver os resultados das provocações lançadas em forma de exercícios, sobretudo o poder de identificação que cada poema gera em quem o lê, partindo do biografema individual para o encantamento de tudo o que o poema tocar para além dele e de sua autoria. Viva a poesia!
Equipe Fazia Poesia
Agradecemos a toda a turma que esteve conosco nessa primeira oficina do ano. Começamos felizes e satisfeitos com as participações, trocas e construções mútuas ao longo dos 11 dias de oficina envolvendo poesia e autoficção com a poeta e amiga Anna Clara. Que sigamos assim, aprendendo, expandindo nosso repertório e produzindo a poesia contemporânea.
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